sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Resenha Crítica

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CAMPUS XII - GUANAMBI - BAHIA



DOCENTE: Warley Andrade
DISCENTES: David Xavier Souza Júnior
                       Edson de Oliveira Viana
                       Jairo Vieira da Silva
                       Rogério Brito Santana Pires
TURMA: Administração – 2º Semestre
DATA: 29/03/2010

Resenha Crítica

COURTINE, Jean-Jacques. O desaparecimento dos monstros. In MIRANDA, Danilo Santos de (org.). Ética e cultura. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2004. p. 157-168.

Jean-Jacques Courtine é Doutor em Lingüística pela Universidade Paris X - Nanterre, professor de Lingüística, Cultura e História das Mentalidades, na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, EUA. Vencedor do prêmio Psyche, na categoria História da Medicina e Psiquiatria - Paris, 1988. Co-autor da obra Histoire du Corps XVI – XXe, (Seuil,Paris) dentre outras.
O texto O Desaparecimento dos Monstros, escrito pelo autor Jean-Jacques Courtine, retrata as exibições de monstros humanos em feiras populares que ocorriam no século XIX, consideradas verdadeiros espetáculos, os quais despertavam a curiosidade das pessoas em olhar as deformidades humanas, exibições estas que mudavam a rotina cotidiana das grandes cidades pelas quais passavam tais atrações. Existia, naquela época, uma curiosidade pública em ver tais deformidades corporais, encaradas como erros ou acidentes da natureza. Tal fato impulsionou o investimento no mercado de monstros, visto que o mesmo era bastante lucrativo. Esse tipo de negócio proporcionou um vasto campo de experimentação para a indústria do divertimento de massa, fazendo com que empresários capitalistas modernos visualizassem um enorme potencial e tornassem esses espetáculos um mercado de massas, marcado pela curiosidade das pessoas em olhar as ditas aberrações humanas. Porém, com o passar do tempo, o público, que outrora, lotava os espetáculos dos monstros, não contemplava mais tais atrações, já que não satisfaziam mais suas necessidades psicológicas, que se caracterizavam pela curiosidade do olhar. Em virtude disso, estes espetáculos, aos poucos, foram tornando-se banais.
Os olhares das pessoas buscavam, então, novos estímulos visuais, o que desencadeia o desenvolvimento de uma indústria de entretenimento recheada de tecnicismo e modernismo, que culmina na invenção do cinema. Em decorrência desses acontecimentos, os monstros saíram das exibições em palcos das feiras populares para as telas do cinema. Essa transferência dos espetáculos das feiras populares para as telas de cinema foi desencadeada por Disney, a partir do momento que este introduziu seres inanimados, que na realidade, eram formas humanas misturadas com animais. Em decorrência disso, as monstruosidades humanas foram substituídas por estes seres criados por Disney. O texto também retrata que, no decorrer da história que envolve as exibições de seres dotados de deformidades humanas, ocorre uma mudança de percepção e sensibilidade do público em relação à exposição dessas monstruosidades humanas, tendo em vista que, as mesmas passaram a não ser encaradas com tanta naturalidade, já que o público passou a chocar-se com tais exibições, não mais tolerando tais espetáculos.
Outro ponto tratado no texto diz respeito às mudanças ocorridas no século XIX, em relação às monstruosidades humanas, que passam a fazer parte da literatura e do teatro, encenando enredos caracterizados pelo romantismo entre estes seres e as pessoas ditas normais. Dentro do contexto desse tipo de obras, o autor cita O Corcunda de Notre-Dame, que retrata a história de um homem de feições deformadas, membros destorcidos, porém sensível às manifestações da beleza em todas as suas nuances. Este homem vive na escuridão, assombrando as torres de Notre-Dame de Paris, e sofre muito por sua imposta solidão. No entanto, no desenrolar da obra, ele apaixona-se por uma mulher. Surge, então, uma relação romântica, que é considerada impossível, em virtude das diferenças existentes entre os dois. Essa relação romântica impossível é o que marca a obra.
Ao saírem das praças públicas, as criaturas tidas como aberrações humanas tornaram-se, então, alvos da ciência, visto que passaram a ser objetos da investigação científica de médicos, naturalistas, antropólogos, dentre outros profissionais das ciências humanas. Surgiu com isso uma literatura teratológica, isto é, voltada para o estudo das monstruosidades. Isso fez com que os monstros saíssem da vida pública e passassem a viver confinados, permanecendo em constante observação. Este fato proporcionou descobertas científicas que levaram a crer que os monstros eram dotados de alma, eram humanos. Manifestava-se, com isso, um sentimento humano, uma sensibilidade de perceber que os monstros viviam em uma grande e absurda miséria.
É possível constatar que, já no início do texto, o autor Jean-Jacques Courtine apresenta questionamentos sobre o universo que gira em torno da relação que os seres humanos têm com o corpo, fato este o qual culmina com uma pesquisa histórica a qual objetiva desvendar o que modificou o comportamento das pessoas, as quais antes tinham curiosidade em dirigir o olhar em direção às deformidades humanas, mas, ao longo da história, tal comportamento foi se transformando, e os indivíduos não mais tinham o mesmo interesse e curiosidade em atentar-se para tais monstruosidades, pelo contrário, desviavam imediatamente a sua atenção quando se deparavam com tais aberrações da natureza, demonstrando constrangimento.
Segundo a ótica do autor, tal modificação no comportamento das pessoas está relacionada à mudança da reflexão ética sobre o corpo. Realizando-se uma análise dos costumes e comportamentos que norteiam a sociedade do século XIX, pode-se constar que, naquela época, não havia preocupação com a estética corporal, não havia hábitos que buscassem a perfeição ou melhoria da estética do corpo. Os indivíduos que integram a sociedade do século XIX não possuíam essa preocupação exagerada com a forma, a saúde e a beleza. Por isso, não se constrangiam em olhar para os monstros humanos, exibidos em praça pública para a diversão da população. A população daquele tempo buscava suprir suas necessidades psicológicas em ver tais deformidades tidas como aberrações, simplesmente, para matar a curiosidade de seus olhares. Porém, as mudanças na sociedade modificaram esse tipo de comportamento, já que as exibições não mais fazem parte de nosso cotidiano ou do conjunto de atrações e entretenimento, as quais a sociedade assiste para divertir-se.
A forma, a saúde, a beleza tornaram-se, ao longo da história, uma obsessão generalizada, fato este que ocasionou o surgimento da relação ética com o corpo. É interessante observar e verificar que as pessoas perderam o interesse em olhar tais deformidades, passando, então, a assustar-se com tais deformações humanas ao passo que foram estabelecendo-se na sociedade, hábitos e costumes que demonstravam a preocupação com a estética do corpo, a busca pela beleza estética e pela forma ideal do corpo.
Devido a essas modificações no comportamento dos indivíduos, o interesse e a curiosidade em olhar deformidades humanas desapareceram. As necessidades psicológicas que motivam a curiosidade das pessoas em olhar são outras, já que, atualmente, os indivíduos da sociedade estão mergulhados numa rotina de vida na qual são constantemente bombardeados por propagandas que focalizam a estética corporal, mostrando mulheres sensuais, quase que desnudadas, em situações totalmente apelativas, que demonstram uma mudança de valores éticos e culturais nos quais a sociedade mergulhou sem pensar. Jean-Jacques Courtine expressa esse ponto de vista, pois para ele

[...] O sentimento da vida citadina é, dessa forma, acompanhado pela imersão num universo visual onde os olhos dos transeuntes são solicitados e orientados, como nunca antes haviam sido, por dispositivos inéditos que transformam profundamente as maneiras de ver, deslocando a posição do sujeito que observa, multiplicando os ângulos da curiosidade, modificando progressivamente os apetites visuais do público e preparando os olhares do público para um outro exercício [...].

Dentro dessa perspectiva de perda de valores éticos que hoje circunda a sociedade, pode-se observar o quanto o corpo é ostentado e proporciona um lucro imenso em face da valorização da imagem estética que envolve a sociedade atual. É fundamental, realizar-se um comparativo entre os lapsos temporais: antes, o que era visto como deformidade humana era o atrativo visual para a população e também o que gerava lucro, porém era um lucro que não ia para os bolsos de quem estava sendo exposto, já que era considerado um objeto humano que vivia em profunda miséria, mas para quem o empresariava; hoje, a imagem estética é um aspecto de grande relevância dentro da sociedade, que está em evidência e é considerado o grande atrativo visual do momento, o que proporciona grande lucro para as pessoas que são dotadas de uma bela aparência, fatores estes que motivam uma cultura estética na busca pela perfeição das formas corporais, criando, então, hábitos e costumes voltados para este interesse. A partir do momento que surge esta cultura estética na sociedade, e levando-se em consideração que as mídias de comunicação influenciam atitudes e comportamentos, sendo, portanto, fortes formadoras de opinião, são estabelecidos padrões de beleza corporal e estética os quais passam a ser referências e alvos a serem atingidos por todos aqueles que cultuam o corpo.
Outro ponto analisado pelo autor é a falta de entretenimento existente naquela época, que era um fator tão marcante no século XIX que bastava uma simples feira com a exposição de diferentes atrativos, para que a população se mobilizasse em torno de tal acontecimento, fato este que chamava a atenção de todos para esse evento recheado de excentricidades, e ao mesmo tempo, ofuscava o interesse da sociedade para problemas de maior relevância, contribuindo, então, para a alienação de grande parte da população.
Considerando que a sociedade sofria de uma acentuada falta de informação sobre as deformidades humanas, percebe-se, nas entrelinhas do discurso de Jean-Jacques Courtine, a existência de um comportamento inocente, porém, ao mesmo tempo, desumano, podendo até definí-lo como incoerente, tendo em vista que ali se encontravam pessoas que tinham sentimentos e sofriam por não serem “normais”, a ponto de serem taxadas de monstros,
  
[...] Esta curiosidade que, há tanto tempo, exercia-se com uma espécie de alegre inocência, tornou-se suspeita, e seus prazeres foram considerados mórbidos: a ciência dos monstros, pacientemente elaborada pelo século XIX, vai reivindicar a posse de seus objetos, destituindo tal curiosidade de qualquer legitimidade “científica” que ela porventura ainda atribuísse a si mesma [...].


Os monstros, os quais a sociedade da época se referia, eram, na verdade, seres que sofriam com uma deformidade proveniente de um acidente da natureza, mas “os monstros têm uma alma, são humanos, terrivelmente humanos”. Esse paradigma, que girava em torno das pessoas que nasciam com tais deformidades e as levava a serem consideradas monstros humanos, foi rompido pela evolução da Medicina, tendo em vista que seus estudos científicos comprovavam que tais ocorrências são originárias de problemas genéticos, os quais, na atualidade, já podem ser resolvidos ou amenizados a partir da realização de cirurgias e procedimentos médicos altamente avançados, gerando um conforto psicológico e visual para aqueles que sofrem de tais deformidades.
 Paralelo às descobertas científicas que surgiram a partir do século XIX, quando os monstros saíram das feiras populares, e passaram a ficar confinados como objetos de observação científica para médicos, antropólogos e outros cientistas, observa-se que emergiu um sentimento de compaixão por tais criaturas, a partir do momento em que as análises científicas constataram que eles eram dotados de alma. Este fato juntamente com a insurgência da compaixão popular por tais seres contribuiu para que fosse formada, ao longo do século, a noção de deficiência, a qual passou a caracterizar os seres que nasciam com tais deformidades como deficientes, e não mais como monstros humanos.
Atrelado a esses fatos, é possível se constatar na sociedade uma grande mobilização no sentido de incluir socialmente os indivíduos deficientes, envolvendo entidades governamentais e não-governamentais, que realizam intensos movimentos de inclusão, que buscam demonstrar o quanto a sociedade tem evoluído em relação a esse assunto. Porém o comportamento da população demonstra uma forte contradição: é possível verificar que ações de inclusão social voltados para os deficientes e a aceitação dos monstros humanos como deficientes são um mero paliativo, já que a presença física de tais criaturas ainda perturba a população. É notório perceber que as pessoas que nascem com deformidades físicas, mesmo que tais problemas sejam explicados cientificamente, ainda não são totalmente tolerados e aceitos pela sociedade. Apesar das pessoas negarem publicamente que são preconceituosas em relação a tal situação, observa-se que ao estar na presença física de pessoas deficientes, grande parte da população não as encara com naturalidade, buscando sempre desviar o olhar direto, demonstrando certa repudia, confirmando, então, a perturbação em encarar tais deformidades humanas.
Tal fato demonstra o recalque que a sociedade possui em encarar tais seres com naturalidade, mas também enfatiza a existência da hipocrisia dentro da mesma, tendo em vista que dissemina um sentimento de compaixão para com as pessoas portadoras de deficiências, porém, em contrapartida, suas atitudes não condizem com o que pregam. Essa contradição também é questionada pelo autor quando o mesmo afirma que:

[...] o paradoxo desta compaixão dirigida ao corpo monstruoso ou disforme, e, em termos gerais, da compaixão que presidiu a elaboração da noção de “deficiência” ao longo do século: do amor por ela manifestado aumenta em proporção ao distanciamento do objeto. O monstro pode proliferar na distância virtual das imagens e discursos, mas sua proximidade carnal perturba. Compreendemos assim o constrangimento coletivo dos passageiros daquele vagão: com a súbita irrupção do monstro, não puderam escapar da desagradável experiência do retorno do recalcado.

O texto de Jean-Jacques Courtine é caracterizado por uma complexidade textual, marcada pela utilização de um vocabulário rebuscado, fato este que obriga o leitor a realizar inúmeras releituras para que possa compreender e identificar os pontos que o autor pretende enfocar. Isso demonstra o quão exigente é Jean-Jacques Courtine em relação ao seu público leitor, tendo em visto que o uso de uma linguagem altamente complexa define que não é qualquer um que lê e compreende sua obra. Percebe-se, então, que o autor deseja que o leitor mergulhe na problemática que é relatada nas linhas, e principalmente, nas entrelinhas, para que, então, consiga atingir a mesma linha de raciocínio a qual delineou o conteúdo da obra. A partir daí, o leitor poderá tecer comentários com criticidade e propriedade, características somente alcançadas por aqueles que conseguem aprofundar-se no texto de Jean-Jacques Courtine.
Considerando-se a profundidade com que o autor aborda a problemática da relação ética com o corpo, enfatizada no texto pela mudança de comportamento da sociedade em relação aos seres portadores de deficiência, no passado, considerados monstruosidades humanas, hoje, deficientes; é oportuno relatar que tal obra permite a reflexão sobre determinados comportamentos e atitudes existentes na sociedade os quais são camuflados e disfarçados de tal forma a não perceber a perturbação que tais criaturas dotadas de deformidades ainda causam, mesmo havendo um enorme movimento no sentido de incluí-los socialmente. Tal reflexão é relevante para a sociedade, tendo em vista que torna transparente tais comportamentos e atitudes, os quais são contraditórios em relação a o que a sociedade prega. Além disso, a discussão sobre tal problemática desperta a atenção para como determinados valores sociais e éticos devem ser tratados, ao invés de serem colocados de lado, simplesmente, esquecendo-os ou ignorando-os.
Portanto, é mister colocar que a leitura do texto contribui para a formação de uma consciência a respeito da relação ética com o corpo, permitindo que os indivíduos da sociedade percebam o quão desumanas ainda estão sendo suas atitudes em relação aos seres considerados desprovidos de normalidade física, tido como deficientes, atitudes estas que são mascaradas com tentativas de inclusão social, mas, que no fundo, são desprovidas de compaixão, já que, a proximidade de tais seres causam sentimentos de perturbação, caracterizando uma imensa hipocrisia na qual a sociedade ainda se encontra mergulhada.







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